Hunt, filme de Lee Jung-Jae revela realidade da Coreia
Em um determinado dia eu comecei a traduzir os textos do colunista David Tizzard do jornal The Korea Times, porque sua visão apaixonada porém realista de quem vive a muito tempo na Coreia, é inegualável. Qual não foi a minha supresa quando um dia ele comentou em um dos textos (do Koreapost) agradecendo pela tradução. A partir daí nasceu uma parceria e eu realmente não me canso de me admirar com a qualidade dos textos do David. Por isso, nada mais natural do que trazê-lo também para o Korea Plus.
Em Fevereiro, quando eu estiver na Coreia, terei o prazer de entrevistá-lo e publicar o resultado deste encontro aqui para vocês.
Hoje, agracio vcs com a crônica dele sobre o mais recente lançamento cinematográfico de Lee Jung-jae, grande ator conhecido pelo papel principal em Squid Game (ou no Brasil, Round Six) e que agora faz sua estreia como diretor de cinema.
"Este é um filme sobre a Coreia. Trata-se, portanto, de divisão. Sobre a violência. E a morte. Sobre como visões de solidariedade e ação coletiva são frustradas a cada passo, muitas vezes com a trilha sonora de ossos quebrados, balas e sangue.
Esperamos violência dos filmes coreanos e "Hunt" tem muito disso. Deve haver pelo menos 200 mortes na tela durante o filme complementadas por cenas de tortura e uma trilha sonora de gritos. Isso não é K-pop.
Mas o mais importante é que a violência demonstrada é "coreana" sobre os "coreanos". As pessoas do país não são retratadas como espectadores inocentes virtuosos em um jogo de política de grande poder disputado por estados nucleares. Em vez disso, mostra a realidade visceral do que o povo coreano fez (e continua a fazer) uns aos outros. Isso mostra a necessidade dessa violência. A história. O trauma. O presente. Gwangju.
Enquanto muitos filmes caem na armadilha de empurrar uma certa agenda, tentando reescrever a história na tela do cinema, os melhores diretores deste país evitam tais armadilhas. Tanto Park Chan-wook quanto Bong Joon-ho há muito tempo brincam com convenções e, em vez disso, forjaram uma forma de contar histórias caracterizada pela complexidade e ambiguidade, em vez da simplicidade maniqueísta. Quem são os mocinhos e bandidos de "Parasita", por exemplo? "Oldboy" tem um herói?
Lee Jung-jae trilha um caminho semelhante porque a divisão retratada em "Hunt" não se limita a uma única facção ou ideologia. A direita, a esquerda, o Sul e o Norte não estão apenas lutando contra seus oponentes, eles estão lutando uns contra os outros. As divisões internas são tão pronunciadas quanto as externas. Um aforismo frequentemente repetido soa verdadeiro a esse respeito. Se você colocar dois coreanos em uma ilha deserta, eles farão três partidos políticos: o meu partido, o seu partido e o nosso partido.
O espectro do comunismo paira sobre o filme, assim como já aconteceu de verdade. O filme nos lembra como as pessoas no sul foram arrastadas para Namsan no meio da noite por lerem o livro errado ou terem a opinião política incorreta. O termo "ppalgaeng'I" (comuna) era usado prontamente a qualquer um que ousasse sair da linha e criticar o presidente ou o establishment. E, no entanto, apesar da vergonha social e das consequências que podem surgir, os sul-coreanos tem se voltado contra seus líderes, seja por meio de protestos, política ou assassinato. Na verdade, eles realmente têm sido muito bons nisso. Certamente muito melhor do que o Norte.
Os espectadores sul-coreanos e aqueles familiarizados com a história e a política do passado sentirão e reconhecerão essa tensão no filme. Não tenho certeza, no entanto, de que ele seja plenamente entendido pelos espectadores internacionais. A parte boa é que esse filme parece mais com um filme coreano raíz do que um K-Filme. E isso é uma coisa boa. A arte não deve ser medida em números e prêmios, apesar do que os capitalistas internacionais modernos possam dizer.
Outra coisa boa é o elenco. Não há ninguém neste filme só por ser bonito ou por ser um ídolo da indústria do K-pop. Em vez disso, há atores sérios e pessoas desempenhando seus papéis corretamente. Claro, que tem gente bonita (afinal, é um filme), mas parece haver um foco em fazer com que os atores sejam capazes de entregar performances críveis. O início é definitivamente um pouco complicado com as cenas de protesto, mas, uma vez que o elenco principal assuma o controle, começará a sua experiência imersiva. Talvez você também pegue um cigarro porque, enquanto a sociedade está franzindo a testa para eles cada vez mais, no filme há ótimas cenas de Lee Jeong-jae e o resto da tripulação fumando loucamente.
Embora o filme se concentre fortemente na política doméstica coreana, há uma mensagem universal lá que todos nós podemos entender: nenhum país, nenhum povo, quer um líder incapaz e imoral. Se quisermos ser governados, queremos alguém forjado nas coisas certas. A questão que este filme se debruça, porém, é importante e provocativa. O que estamos dispostos a fazer para atingir este objetivo? E quanto estamos dispostos a suportar?
Porém, ao final, não confunda este filme com história. Sim, pode parecer profundo e complexo. Mas nunca corresponderá à realidade do passado. Deve inflamar nossa imaginação, despertar nossa empatia e provocar discussões, mas não deve contradizer os livros de história".
O Dr. David A. Tizzard (datizzard@swu.ac.kr) tem um Ph.D. em Estudos Coreanos e leciona na Universidade Feminina de Seul e na Universidade Hanyang. Ele é um comentarista social/cultural e músico que vive na Coreia há quase duas décadas. Ele também é o apresentador do podcast Korea Desconstructed, que pode ser encontrado online.
As opiniões expressas no artigo são do próprio autor e não refletem a direção editorial do The Korea Times, onde foi originalmente publicado e nem do Korea Plus.